Uma investigação em curso conduzida pelo New York Times e diversas organizações internacionais expõe a descoberta de extensas valas comuns nas regiões de Najha e de Qutayfah, nos arredores de Damasco — evidências devastadoras da repressão sistemática perpetrada pelo regime de Bashar al‑Assad ao longo de mais de uma década de guerra civil.
Após a queda do regime em dezembro de 2024, bombeiros, voluntários e autoridades locais começaram a encontrar covas clandestinas com centenas de corpos em várias regiões do país. Uma das maiores dessas valas, registrada por imagens de satélite, abrange cerca de 40.000 m² e contém estimadas 100 mil vítimas, muitas identificadas por marcas de tortura.
Investigadores do Wall Street Journal relataram entrevistas com sobreviventes de Saydnaya, a prisão-tortura símbolo da brutalidade do regime. Testemunhos confirmam execuções em massa, incluindo o assassinato de 600 detentos em apenas três noites durante março de 2023. Documentos do regime e relatos de operários escalados para enterrar os mortos confirmam o caráter burocrático e sistemático dos crimes.
Grupos de direitos humanos como Human Rights Watch e Anistia Internacional alertam para a urgência em preservar esses locais e os arquivos do regime — muitos já saqueados ou destruídos — para garantir vestígios cruciais para investigações e julgamentos futuros. Representantes dessas ONGs instam o governo interino — incluindo a recém-criada Comissão Nacional para os Desaparecidos e Comissão de Justiça Transitória — a agir para desvendar os crimes cometidos pelo antigo governo sírio.
A ONU também divulgou em janeiro de 2025 um relatório com base em mais de 2.000 testemunhas, denunciando padrão sistemático de detenções arbitrárias, tortura, execuções extrajudiciais e desaparecimentos como “matéria-prima para crimes contra a humanidade“.
Stephen Rapp, ex-embaixador de crimes de guerra dos EUA, comparou a máquina de morte implementada por Assad à dos nazistas. Segundo ele, haveria mais de 100.000 pessoas desaparecidas e assassinadas, reforçando a legitimidade do pedido de justiça.
As valas comuns encontradas em Najha datam de 2011 a 2014, e de Qutayfah de 2014 a 2019 e eram abastecidas regularmente por caminhões refrigerados. Testemunhas que trabalhavam no local descrevem corpos com marcas de tortura, indicando que muitos morreram nas prisões e hospitais militares, depois foram levados para enterros em locais ocultos.
Apesar das evidências, operadores do regime também teriam removido parte dos corpos em 2019, possivelmente na tentativa de ocultar provas. Enquanto isso, civis tentam localizar entes desaparecidos, o que pode ameaçar ainda mais a preservação dos vestígios.
A Comissão Nacional para os Desaparecidos, criada em 17 de maio de 2025, liderada por Mohammad Reda Jalkhi, e a Comissão de Justiça Transitória, presidida por Abdulbaset Abdullatif, são vistas como passos promissores para responsabilização, mas enfrentam desafios enormes, como institucionalização, acesso a arquivos e proteção dos locais.
Ainda há apelos de entidades como a SNHR, que registra cerca de 136 mil desaparecidos sob o regime de Assad — apenas 31 mil foram libertados — e cujos números são considerados conservadores. Restam ao menos 100 mil mortos não identificados.
Com o regime em colapso e a atual coalizão tentando restaurar instituições, sem ação imediata, os vestígios podem ser irremediavelmente perdidos. A preservação de valas, documentos e arquivos é vital não apenas para punir perpetradores, mas para dar dignidade aos desaparecidos, dar respostas às famílias e reconstituir a memória coletiva.
À medida que a Síria tenta se reerguer, a tarefa de enfrentar o legado de atrocidades será decisiva para a reconciliação nacional e para que se evite o retorno do ciclo de impunidade.
Fontes: New York Times, Wall Street Journal, ONU