A coincidência sinistra que acompanha Alexandre de Moraes parece não ter se limitado à sua data de nascimento. Nascido em 13 de dezembro de 1968, o ministro veio ao mundo no mesmo dia em que foi decretado o Ato Institucional Número 5 — e é dele que parece tirar inspiração para suas ações.
Assim como os signatários do ato institucional, Moraes diz agir em nome da democracia. Se vez ou outra pisa fora das quatro linhas da Constituição, é porque “a instituição da democracia”, como disse na época o Ministro da Marinha, Almirante Augusto Rademaker, “não fica defendida assim”.
De fato, à época da edição do Ato, não faltaram defesas de que ele seria absolutamente necessário para a restauração da democracia no Brasil. Autor intelectual do AI-5, o então Ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva — catedrático da Faculdade de Direito da USP, tal como Moraes — foi quem expressou isso mais claramente, numa passagem que poderia ser usada por qualquer defensor dos atos alexandrinos:
“A Revolução foi feita exatamente, como um dos seus pontos fundamentais, para impedir a subversão e assegurar a ordem democrática. Se essa ordem democrática corre risco, outra razão não existe senão nos socorrermos de instrumentos revolucionários adequados para que possamos restaurar a verdadeira democracia, autêntica democracia, que é o desejo de todos nós. Porque outra coisa não desejamos senão isso.“
Cinco décadas depois, a retórica é a mesma. A diferença é que agora não vem de fardas nem de generais, mas da toga de um só homem.
Se o Ato Institucional nº 5 está morto no papel, seu espírito continua vivo — e encontra em Alexandre de Moraes seu mais zeloso executor.
Abaixo, você verá como cada um dos pilares daquele que foi o mais autoritário dos atos da ditadura militar reaparece, com espantosa semelhança, nas decisões de um único ministro do Supremo Tribunal Federal.
O fim do habeas corpus
Em seu Art. 10, o AI-5 suspendia o habeas corpus “nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.”
E esta é, de fato, a situação de quem quer que Alexandre de Moraes decida incluir em seus inquéritos infinitos. Como a jurisprudência do Supremo não admite a impetração de habeas corpus contra decisão de ministro do próprio tribunal, resta aos alvos do delegado Alexandre de Moraes recorrerem ao juiz Alexandre de Moraes.
Por óbvio, o poder sem nenhum tipo de controle tende ao abuso — como ocorreu no caso do ex-deputado estadual Homero Marchese (NOVO-PR).
Em novembro de 2022, Marchese publicou em seu Instagram um cartaz anunciando que seis ministros do Supremo — Moraes entre eles — iriam palestrar em Nova York sobre “democracia e liberdade no Brasil“. Apesar de a informação ser pública e divulgada pelos organizadores do evento, foi o suficiente para Moraes cassar suas redes sociais. Após muita insistência e diligências junto às plataformas, Marchese descobriu que seu processo corria no STF — e que a decisão do ministro atribuía a ele o comentário de um terceiro que compartilhou a publicação.
O fim da proteção aos juízes
Um dos motivos para a criação do AI-5 foi a proteção que presos por crimes políticos encontravam no Judiciário. Quem defendia o recrudescimento do regime militar — a chamada “linha dura” — nunca tolerou que figuras como Miguel Arraes conseguissem fugir para o exílio após se verem livres da prisão graças a um habeas corpus.
Assim, para enquadrar juízes desobedientes, o AI-5, em seu Art. 6º, suspendia as garantias de “vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade” que protegiam a independência de juízes e membros do Ministério Público.
Como nos anos de chumbo, poucas coisas são tão perigosas para um juiz quanto discordar das decisões de Alexandre de Moraes.
Em 2024, o juiz federal José Jácomo Gimenes, da comarca de Maringá, analisou o caso de Homero Marchese, descrito acima, e deu ganho de causa ao ex-deputado. Gimenes reconheceu que, ao não justificar o bloqueio das redes sociais de Marchese — e ao não desbloquear seu Instagram por meses, mesmo quando suas outras redes já haviam sido liberadas —, a União havia incorrido em dano contra o autor. Avisado pela Advocacia-Geral da União do resultado do julgamento, Moraes cassou a decisão do juiz e ordenou que o Conselho Nacional de Justiça investigasse o magistrado.
Já este ano, Moraes mandou investigar o juiz Lourenço Migliorini Fonseca Ribeiro, da Vara de Execuções Penais de Uberlândia (MG). Seu crime? Apreciar o pedido de progressão de pena de um dos presos do 8 de Janeiro, detido em um presídio sob sua jurisdição.
A proibição da vida política
Uma das mais draconianas previsões do AI-5 vinha da combinação dos Artigos 4º e 5º. O primeiro permitia a cassação dos direitos políticos de quaisquer cidadãos por dez anos. O segundo implicava na morte política dos alvos.
O cassado não apenas era proibido de exercer mandatos, votar ou ser votado — o Inciso III do Art. 5º proibia até mesmo manifestações “sobre assunto de natureza política”. A pessoa poderia ter sua liberdade vigiada, ser impedida de frequentar certos lugares e até ter seu domicílio determinado pela ditadura.
Esta é a situação em que um sem-número de alvos dos inquéritos alexandrinos se encontra. Dois exemplos saltam aos olhos: Filipe Martins e Jair Bolsonaro.
Apesar de não terem nenhuma condenação, ambos estão proibidos de conceder entrevistas ou usar redes sociais. Martins chegou a ser multado e ameaçado de prisão por aparecer calado em um vídeo publicado não por ele, mas por seu então advogado. Ontem, em 21 de julho, Bolsonaro foi ameaçado de prisão por conceder uma entrevista publicada não por ele, mas pela imprensa.
Indo além até do que a ditadura fazia, Moraes também se tornou pródigo na punição a familiares de seus alvos. Na decisão que proibiu o filho de Carla Zambelli de usar redes sociais, o ministro não se deu ao trabalho de justificar — apenas cita o nome de João Hélio, filho da deputada, para sentenciar que ele estará proibido de ter contas em redes sociais. Caso parecido ocorre com Marina Eustáquio, filha do jornalista exilado Oswaldo Eustáquio, que não apenas está proibida de usar redes sociais, como também viu sua mãe ser ameaçada de prisão caso voltasse a tê-las.
O atropelo do Legislativo
Um dos artigos mais agressivos do AI-5 é o Art. 2º, que previa que o Presidente da República poderia decretar recesso parlamentar e passar a “legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios.”
Apesar de (ainda) não terem decretado recesso do Legislativo, Alexandre de Moraes e os demais ministros do Supremo não se furtaram em “legislar em todas as matérias”.
Ainda este ano, o STF, por maioria, decidiu não apenas invalidar o que estava escrito no Marco Civil da Internet, como impor o exato oposto do que foi aprovado no Congresso.
Onde o Marco exige decisão judicial, o STF diz que não precisa. Onde o Marco exige fundamentação para a derrubada de postagens, o STF diz que não será necessário fundamentar. Onde o Marco busca descentralizar o controle da Internet, o STF quer concentrá-lo num único órgão do governo federal — com comando político.
Em 2023, mesmo sem ter recebido um único voto, Alexandre de Moraes, monocraticamente, determinou que o Governo Federal deveria criar uma política nacional para moradores de rua. E assim foi feito. A solenidade de inauguração contou com o próprio Moraes como um dos convidados.
A competência universal de Alexandre de Moraes
A ditadura precisou de um novo Ato Institucional — o de número 6 — para transferir o julgamento dos “crimes contra a segurança nacional” para a Justiça Militar.
Para Alexandre, entretanto, não foi necessário nenhum tipo de legislação. Após a abertura do inquérito das fake news, o ministro já colocou sob sua alçada investigações que vão desde o adolescente que invadiu o perfil da primeira-dama Janja na rede social X até o bilionário Elon Musk. De fato, se a Justiça Militar da ditadura limitava sua atuação ao território nacional, Moraes já emitiu ordens de alcance global.
As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do site Danuzio News.*