A cúpula do BRICS marcada para esta semana no Brasil deveria simbolizar a consolidação de um bloco capaz de desafiar a ordem global dominada por Estados Unidos e Europa. Mas a ausência de quatro atores centrais — China, Rússia, Egito e Irã — lançou uma sombra sobre a relevância prática do encontro. Ainda assim, uma pauta ambiciosa sobre a criação de uma moeda comum para rivalizar o dólar americano ocupa o centro do debate, mesmo sendo considerada por especialistas como uma proposta distante da realidade.
A proposta de criação de uma moeda unificada do BRICS não é nova. Surgiu inicialmente há mais de uma década como um ideal de cooperação econômica aprofundada. Ganhou fôlego nos últimos anos, alimentada pelo discurso de “desdolarização” — o desejo de reduzir a dependência da moeda americana nas transações internacionais. Entretanto, nem mesmo seus defensores mais entusiásticos escondem os enormes obstáculos.
Para começar, o bloco é uma colcha de retalhos: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul têm interesses estratégicos distintos, regimes políticos díspares e níveis de integração econômica muito desiguais. Agora, com novos integrantes — incluindo Egito, Etiópia, Irã e Arábia Saudita —, as diferenças se multiplicaram. Nenhum mecanismo efetivo foi criado para harmonizar políticas fiscais ou monetárias, pré-requisitos essenciais para uma moeda única minimamente funcional. O economista Eswar Prasad, da Universidade Cornell, resumiu a dificuldade enfrentada pelos BRICS:
“Se é difícil manter a coesão na zona do euro, que compartilha fronteiras e regulações comuns, imagine entre países com disputas geopolíticas abertas e estruturas econômicas díspares“.
Com China e Rússia fora desta reunião — Xi Jinping justificou “prioridades internas” e Putin anunciou a ausência devido à falta de transparência do Brasil em relação à decisão do Tribunal Penal Internacional de prendê-lo — a iniciativa soa mais como retórica política do que projeto imediato. O discurso oficial dos governos menciona “estudos preliminares” sobre moedas alternativas e a ampliação do uso de acordos bilaterais de pagamento em moedas locais. Mas mesmo essas ideias esbarram em limitações técnicas e no receio de investidores sobre instabilidade cambial.
Na imprensa internacional, a ausência das duas potências centrais gerou análises duras sobre o esvaziamento do BRICS. O The Economist publicou um editorial afirmando que o bloco “corre risco de virar um fórum retórico sem impacto tangível na ordem financeira global“. Já o Le Monde destacou que o afastamento de Xi e Putin sinaliza o desinteresse momentâneo em investir capital político em um encontro dominado por disputas regionais e sem consensos claros sobre prioridades.
Mesmo líderes presentes, como Narendra Modi, da Índia, preferiram focar em projetos de cooperação científica e investimentos em infraestrutura, reconhecendo que a proposta de moeda comum carece de base institucional sólida.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, também alertou que, enquanto novas iniciativas de moedas alternativas podem ter “interesse geopolítico“, não devem agravar a fragmentação financeira que ameaça países em desenvolvimento com maiores custos de financiamento e volatilidade.
Outro fator que contribui para o ambiente conturbado é a própria expansão do BRICS. A entrada do Irã, país sancionado por boa parte do Ocidente, e a participação da Arábia Saudita, com seus interesses muitas vezes conflitantes com Teerã, criaram novos atritos. Enquanto o bloco pretendia mostrar força ao incluir atores do Golfo e do Oriente Médio, acabou expondo mais divergências.
Por exemplo, a Arábia Saudita prefere manter o dólar como moeda de referência para seu comércio de petróleo, enquanto o Irã defende explicitamente a “substituição completa“ do dólar por alternativas baseadas em cestas de moedas dos BRICS. Este descompasso mina qualquer tentativa de consenso mínimo. A guerra na Ucrânia adiciona outro complicador: muitos países temem sanções secundárias caso suas transações passem a envolver bancos russos.
A tentativa de criar uma nova moeda de reserva esbarra em três obstáculos principais. Primeiro, o volume de comércio intra-BRICS é expressivo, mas não suficiente para ancorar uma moeda com liquidez global. Segundo, a desconfiança mútua entre os governos sobre quem controlaria o sistema monetário gera paralisia. E, terceiro, nenhuma instituição multilateral do bloco tem poder técnico ou legitimidade para implementar uma união monetária.

A realidade é que cerca de 90% do comércio global ainda é liquidado em dólares e euros, segundo dados do SWIFT. Mesmo que parte dos contratos de petróleo russos e chineses hoje seja efetuada em yuan, o uso permanece restrito a acordos bilaterais e não cria massa crítica.
Em contrapartida, defensores da proposta, como o chanceler russo Sergei Lavrov, argumentam que o dólar se tornou “instrumento de coerção política” e que a criação de alternativas fortalece a soberania dos países emergentes. Mas, mesmo entre aliados, a aposta é que qualquer plano desse porte exigirá pelo menos uma década de negociações, marcos regulatórios e testes pilotos.
Temos ainda outro fator de pressão nos países dos BRICS que foi a vitória de Donald Trump na última eleição norte-americana e suas críticas enfáticas quanto à adoção de uma moeda comum pelo grupo, que teria como consequência impostos elevados ou corte de relações comerciais com os EUA. Logo após essas declarações, vários líderes dos BRICS se pronunciaram, declarando que a criação de uma moeda comum não está em negociação entre os membros.
Uma cúpula com temas esvaziados
Sem a presença de seus dois principais fundadores e maiores economias, e com divisões sobre sanções e guerra, o encontro no Brasil tende a produzir mais declarações de intenções do que avanços concretos. O risco é que a cúpula seja lembrada pelo contraste entre retórica e capacidade real de coordenação.
Por outro lado, a reunião deve reforçar agendas mais pragmáticas, como investimentos cruzados em infraestrutura, energia limpa e agricultura. Esses projetos, menos polêmicos, têm potencial para gerar impacto direto na economia dos membros, algo que pode se tornar o verdadeiro legado do BRICS nesta década.
Enquanto isso, a proposta de criar uma moeda capaz de rivalizar o dólar serve como potente símbolo político — mas um símbolo ainda longe de se materializar.