Rússia recruta estrangeiros: a nova legião de Putin e os ecos da história militar europeia

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Com mais de três anos de guerra intensa contra a Ucrânia, a Rússia enfrenta um dilema estratégico e político: como manter sua ofensiva sem provocar uma nova onda de mobilização interna que possa desestabilizar ainda mais o país? A resposta veio em julho de 2025, quando o presidente Vladimir Putin assinou um decreto que autoriza cidadãos estrangeiros a servirem no exército russo mesmo fora de estados de emergência ou lei marcial. A medida também permite que especialistas acima do limite de idade ingressem em agências como o FSB e o SVR, ampliando o escopo do recrutamento militar e de inteligência.

Essa decisão não é apenas uma resposta ao desgaste humano da guerra — que já causou mais de um milhão de baixas entre soldados russos, segundo o Estado-Maior da Ucrânia — mas também uma tentativa explícita de evitar o custo político de uma nova mobilização nacional. O decreto de mobilização parcial de setembro de 2022, ainda em vigor, provocou o êxodo de mais de 261 mil russos, revelando o impacto social e psicológico da guerra. Ao invés de repetir esse trauma, o Kremlin aposta na internacionalização de suas forças armadas, oferecendo incentivos financeiros e a promessa de cidadania russa a estrangeiros dispostos a lutar.

Entre abril de 2023 e maio de 2024, mais de 1.500 estrangeiros foram recrutados para combater na Ucrânia, segundo o Ministério da Defesa britânico. A maioria veio do Sul e do Leste da Ásia (771), seguida por cidadãos de ex-repúblicas soviéticas (523) e países africanos (72). Os principais atrativos são os bônus de assinatura e a possibilidade de obter cidadania russa — uma oferta que transforma Moscovo em um polo internacional de alistamento militar.

Essa estratégia, embora adaptada ao contexto contemporâneo, tem raízes profundas na história militar europeia. Em 1831, a França criou a Legião Estrangeira como forma de reforçar suas campanhas coloniais sem comprometer o tecido social interno. Formada exclusivamente por estrangeiros — exilados políticos, mercenários e aventureiros — a Legião atuava fora do território metropolitano, especialmente na Argélia, permitindo à França expandir seu império sem agitar o cenário doméstico. Mais do que uma solução logística, a Legião era um instrumento de controle político e reforço imperial.

A Espanha seguiu o mesmo caminho ao fundar, em 1920, o Tercio de Extranjeros, sua própria legião estrangeira. Enfrentando derrotas na Guerra do Rif, o país buscava tropas mais resilientes e motivadas. Inspirada na francesa, a Legião Espanhola recrutava voluntários estrangeiros para missões de alto risco no norte da África. Seu ethos heroico e sua independência em relação ao exército regular espanhol conferiram à unidade uma aura de elite e utilidade política em tempos turbulentos.

A Rússia, ao permitir o alistamento de estrangeiros, parece reativar esse princípio com nova roupagem. A medida não apenas reforça o contingente militar, mas também sinaliza uma mudança de paradigma: o Kremlin reconhece que sua capacidade de mobilização interna está esgotada e que, para sustentar sua ofensiva, será preciso recorrer a soluções externas. Ao incluir especialistas acima do limite de idade em agências de segurança, a Rússia amplia ainda mais sua rede de recrutamento, buscando talentos que possam contribuir com inteligência, logística e operações especiais.

Outros países também adotaram estratégias semelhantes. Os Estados Unidos têm uma longa tradição de recrutamento estrangeiro em suas forças armadas, especialmente durante os conflitos no Oriente Médio. A promessa de green card e cidadania funcionou como alavanca de recrutamento. Israel, durante sua Guerra de Independência, contou com voluntários da diáspora judaica e veteranos da Segunda Guerra Mundial. Mais recentemente, a Ucrânia criou sua própria Legião Internacional, atraindo estrangeiros para combater a invasão russa.

Esses exemplos revelam uma constante histórica: quando a mobilização interna se torna politicamente arriscada ou inviável, os exércitos recorrem a recursos humanos externos. É uma forma de terceirização da guerra, que transfere o custo da defesa para mãos estrangeiras em troca de compensações materiais e promessas de pertencimento. A Rússia, portanto, não apenas reage às pressões da guerra na Ucrânia, mas também reposiciona sua política militar em sintonia com modelos consagrados — e polêmicos — da tradição europeia.

Embora o impacto numérico dos estrangeiros no exército russo ainda seja limitado, o gesto tem peso simbólico e estratégico. Ele mostra que o Kremlin está disposto a adaptar sua política de defesa para evitar novos traumas sociais e políticos. Ao abrir seus quartéis aos estrangeiros, a Rússia confere à sua política de guerra um novo rosto — mais pragmático, mais internacional e menos dependente do consenso nacional.

Essa “nova legião de Putin” não é apenas uma resposta ao desgaste da guerra. É uma tentativa de reinventar a máquina militar russa, inspirando-se em práticas históricas que permitiram a outras potências sustentar seus projetos imperiais sem sacrificar sua estabilidade interna. Em tempos de guerra prolongada, a História sempre retorna com novas fardas — e a Rússia, ao que tudo indica, está vestindo a sua.

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