Por trás do decreto que regulamenta o Programa BR do Mar, assinado em 16 de julho de 2025, não está apenas uma decisão administrativa: está o símbolo de uma mudança profunda na forma como o governo Lula pretende conduzir a política de transportes marítimos no Brasil. A promessa de modernizar o setor e ampliar a cabotagem — transporte entre portos nacionais — ganha agora contornos de um projeto de reindustrialização ancorado em protecionismo produtivo e forte presença do Estado.
A legislação, aprovada em 2022 sob o governo Bolsonaro, caminhava em direção oposta: redução de burocracias, abertura a empresas estrangeiras e estímulo à concorrência. O decreto atual muda essa rota — ou a corrige, dependendo da ótica.
Sob a justificativa de “soberania logística” e defesa da indústria naval nacional, o governo estabelece exigências que tornam mais difícil e custoso o ingresso de novos operadores. A obrigatoriedade de comprovação de capacidade operacional, critérios rigorosos de sustentabilidade e contrapartidas industriais são pontos que, embora bem-intencionados, representam uma mudança de filosofia: do liberalismo regulado para o intervencionismo estratégico.
Do ponto de vista ambiental, o decreto tenta equilibrar discurso e prática. A lei original já previa estímulos a embarcações mais eficientes, com menor emissão de poluentes, mas sem detalhar critérios. O decreto, por sua vez, impõe agora exigências específicas de sustentabilidade operacional para o uso de embarcações estrangeiras — o que inclui, por exemplo, comprovação de eficiência energética e práticas de mitigação de impacto ambiental.
Trata-se de uma tentativa de alinhar o BR do Mar às metas climáticas e à chamada “transição ecológica“, bandeira que o governo Lula vem promovendo internacionalmente. No entanto, na prática, tais exigências podem restringir o mercado apenas a grandes players com capital suficiente para cumprir as normas.
Ao impor novas exigências e barreiras à entrada de operadores estrangeiros, o decreto pode limitar esse potencial no curto prazo, beneficiando empresas já estabelecidas — como a Log-In e a Aliança Navegação —, que detêm parte significativa da frota e estrutura portuária. Ao mesmo tempo, a concentração de mercado pode manter os custos em patamares mais elevados do que o desejável, contrariando justamente o objetivo inicial da lei de 2022: tornar o frete marítimo uma alternativa mais acessível e competitiva para todo o setor produtivo nacional.
Do ponto de vista econômico, a ampliação da cabotagem sempre foi vista como uma das soluções mais viáveis para reduzir o custo logístico no Brasil, país de dimensões continentais e com infraestrutura rodoviária sobrecarregada. Estudos da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) apontam que o transporte por cabotagem pode ser até 30% mais barato do que o rodoviário em médias e longas distâncias, especialmente em rotas acima de 1.000 km. Essa economia impacta diretamente o produtor final: com fretes mais acessíveis, há margem para redução de preços de alimentos, bens de consumo e insumos industriais, além de maior previsibilidade nas entregas.
A oposição acusa o governo de travar um setor que vinha dando sinais de crescimento com a abertura trazida pela lei de 2022. Para críticos como o deputado federal Felipe Rigoni (União-ES), o novo decreto “mata na raiz” a vocação da cabotagem para reduzir custos logísticos e tirar caminhões das estradas — uma das promessas originais do programa. Já entidades ligadas à indústria naval e sindicatos marítimos celebram a medida como um resgate da produção nacional e da geração de empregos em estaleiros brasileiros.
O debate de fundo, no entanto, vai além da polarização. Trata-se de um dilema recorrente em países em desenvolvimento: abrir o mercado em nome da eficiência e crescimento ou uma suposta proteção de setores estratégicos para garantir soberania e empregos? O novo BR do Mar tenta responder apostando em um modelo de nacionalismo produtivo e ambientalismo regulatório. Resta saber se o custo dessa escolha será compensado por ganhos reais em competitividade, sustentabilidade e geração de valor para a logística nacional.
Por ora, o decreto ainda exige regulamentações complementares e testes na prática. Mas o recado político já foi dado: no mar da cabotagem brasileira, o leme voltou para o Estado.