Onze homens e um golpe sem tanque

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Na calada da noite, como só fazem os covardes, a Câmara dos Deputados aprovou mais um mimo para o Supremo Tribunal Federal. Um mimo — não um salário. Um agrado entre amigos. Um agrado entre castas. Um tapinha nas costas entre toga e terno. Um projeto para aumentar os salários dos ministros do STF e criar nada menos que 160 novos cargos. Isso mesmo. Cento e sessenta. Parece que a prioridade nacional agora é encher o Judiciário de mais gente pra bater carimbo no autoritarismo.

Não sei você, mas eu me sinto num show decadente. Um desses festivais com nome bizarro, onde o ingresso é caríssimo, o som é ruim, e no palco só tem artista que esqueceu o porquê de ter começado. Um verdadeiro Gilmarpalooza — não no sentido figurado, mas literal: um evento, de fato, que aconteceu em Portugal, reunindo ministros do STF e políticos brasileiros em encontros nada transparentes, longe da imprensa, do povo, do contraditório. Um camarote jurídico fora do Brasil onde decisões que afetam milhões de brasileiros parecem ser alinhavadas entre vinhos caros e salamaleques diplomáticos.

O STF não governa a favor do povo. O STF governa contra ele. O STF virou uma espécie de condomínio fechado da moral seletiva, onde cada ministro é síndico do seu próprio ego. Vestem a toga como quem veste uma armadura medieval — não para proteger a democracia, mas para se proteger da democracia. Porque, sejamos sinceros, a democracia assusta esse povo. O cheiro do voto popular, o suor do trabalhador, a risada debochada do cidadão comum incomoda mais do que o barulho do helicóptero da Polícia Federal nas redondezas de Brasília.

Criar cargos enquanto o povo come osso não é só indecência. É crueldade. É escárnio. E tudo isso em nome de um Judiciário que já está inchado, lento e, pior ainda, cúmplice da elite política que nos afunda diariamente. Enquanto milhões vivem com menos de um salário mínimo, ministros decidiram que o próprio salário — já pornográfico — precisava de um reajuste. Porque viver com R$ 41 mil mensais é quase um atentado aos direitos humanos, não é, Excelência?

O STF, que deveria ser a última trincheira da liberdade, virou a primeira linha de frente da censura, da perseguição ideológica e da judicialização da política. Quando o Judiciário assume para si a tarefa de legislar e governar, rasga-se a Constituição. E quem assiste calado, assina embaixo.

Aliás, o que mais me assusta nem é o aumento em si — que já é um tapa na cara do país. O que me apavora é o silêncio cúmplice da imprensa, o silêncio cúmplice da classe artística, o silêncio cúmplice de todos aqueles que, um dia, posaram de “críticos do sistema”, mas que hoje se derretem em deferência diante de um careca que quer calar a oposição com canetada e medida cautelar. A liberdade virou um capricho que só se concede aos obedientes.

Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e companhia limitada fazem da toga um escudo para seus próprios interesses. E o pior: fazem isso com o apoio explícito de um Congresso que já desistiu de legislar, desde que alguém lhes garanta o fundão e a impunidade. É uma simbiose perversa entre poderes — e o povo, como sempre, que se exploda.

Há um STF que delira com a própria importância. Que se vê como uma entidade iluminada, acima do bem e do mal, acima das críticas, acima das regras. Que se emociona com seus próprios discursos, que usa o vocabulário rebuscado para esconder a própria fraqueza moral. Que se ofende com qualquer crítica, mas não se ofende com o próprio abuso de poder. Que se diz guardião da Constituição, mas a interpreta como se fosse um espelho mágico que só reflete aquilo que eles querem ver.

Hoje, o Brasil é governado por um triunvirato invisível: o STF, o medo e a conveniência. O Executivo teme o STF. O Legislativo se ajoelha ao STF. E o povo assiste a tudo com uma mistura de apatia e exaustão. Afinal, não há mais forças para lutar quando até a Justiça virou instrumento de opressão. O Brasil virou uma distopia jurídica — e os togados são os roteiristas.

E ainda há quem se espante com a polarização, com a descrença nas instituições, com o crescimento de vozes radicais. Como não haveria? Como pedir moderação a um povo que vê sua liberdade sendo engolida por um Judiciário autorreferente, vingativo e partidarizado? Como pedir paciência a quem já perdeu tudo — inclusive o direito de reclamar?

Esses 160 cargos não são apenas empregos novos. São postos avançados na guerra contra o povo, trincheiras para reforçar o aparato de controle, repressão e blindagem institucional. Cada técnico judiciário que entrar nesse novo esquema é um soldado a mais a serviço do status quo. Não é gente pra atender melhor. É gente pra blindar mais. Pra vigiar mais. Pra punir mais.

E você, que paga imposto, que rala, que tenta empreender, que tenta criar, que tenta respirar: vai continuar fingindo que não vê? Vai continuar dizendo que “pelo menos não é o fascismo“? Que “é para conter o ódio“? Que “é pelo bem da democracia“? Acorda. Isso não é democracia. Isso é uma ditadura de toga. E uma ditadura que se esconde atrás da linguagem jurídica é ainda mais perigosa. Porque parece legal. Parece justa. Mas é só opressão travestida de institucionalidade.

O Brasil precisa de um novo pacto. Um pacto que coloque o Judiciário no seu lugar: como árbitro, não como jogador. Como garantidor de direitos, não como censor de opiniões. Como defensor da liberdade, não como perseguidor de quem pensa diferente.

Enquanto isso não acontece, seguimos no Gilmarpalooza. Um espetáculo dantesco, onde os ingressos são pagos com o nosso suor, e o final — ah, o final — será trágico se a plateia continuar em silêncio.

Porque o silêncio, neste momento, é cumplicidade.

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