O Brasil é dos Brasileiros? O crescente abismo entre a política e o povo

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Após o tarifaço de Trump ao Brasil, a esquerda experimentou um raro sopro de popularidade nas redes, com o discurso de defesa da soberania nacional. Entusiasmado, o governo estuda a mudança do slogan “União e Reconstrução“, e já tem usado frases como “O Brasil é dos Brasileiros” e “Meu Partido é o Brasil“. Aposta-se no marketing para resolver os problemas reais. A proposta revela uma dificuldade da esquerda em se conectar com a população, ao explorar até um slogan da direita (Meu Partido é o Brasil), já usado por Jair Bolsonaro na campanha de 2018.

De todo modo, o assunto tende a perder relevância conforme inflação, segurança e escândalos se imponham no dia a dia do brasileiro. Enquanto isso, o Congresso Nacional aumenta o número de deputados em um país que não tem como pagar as próprias contas, aprova pauta-bomba de R$30 bilhões em aumento de gastos e aprova o chamado PL da Devastação, afrouxando a proteção ambiental. Os interesses nacionais viram bandeira política, mas parecem cada vez mais distantes dos interesses do povo.

Tarifaço de Trump

Ao impor tarifas de 50% ao Brasil, o presidente americano Donald Trump esperava negociar melhores condições comerciais para os Estados Unidos, como tem feito com a União Europeia, China, Índia e todo o mundo. Ao mesmo tempo, conseguiria exercer pressão sobre o governo brasileiro, exortando que se pare a perseguição ao ex-presidente Jair Bolsonaro e chamando o seu julgamento pelo STF (Supremo Tribunal Federal) de caça às bruxas.

Em uma reviravolta inesperada, as tarifas foram percebidas pelo público em geral como uma tentativa de interferência dos Estados Unidos em assuntos internos brasileiros. E o governo foi rápido em rechaçar qualquer ingerência externa, sob o discurso de defesa da soberania nacional. Também foram apontadas inconsistências da carta de Trump, que cita déficits comerciais dos EUA com o Brasil, mas na verdade, as trocas são desfavoráveis ao Brasil.

O governo buscou atrelar a Bolsonaro a responsabilidade pelas tarifas, como se os interesses nacionais estivessem sendo sacrificados pelo interesse pessoal de Bolsonaro para não ser julgado. No entanto, seguidas declarações de autoridades americanas dão conta de que os Estados Unidos vêem um cenário mais amplo de deterioração da liberdade de expressão no Brasil e de ataques aos interesses comerciais americanos, a exemplo da defesa de Lula por uma alternativa ao dólar em reunião dos Brics e a compra de petróleo russo pelo Brasil, o que ainda pode causar sanções secundárias ao país, já que a Rússia é alvo de inúmeras sanções dos países ocidentais após a invasão da Ucrânia.

Esse contexto mais amplo foi tratado pela mídia americana e por autoridades como o próprio Donald Trump, o secretário de Estado Marco Rubio, seu assessor Darren Beattie, além do secretário-geral da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) Mark Rutte, dentre outros. Representantes do Rumble, do X e da Trump Media, empresas americanas que questionam medidas do STF sobre o controle de postagens e contra cidadãos americanos, também têm se manifestado sobre a liberdade de expressão no Brasil.

Impulso da Esquerda

Nas últimas semanas, o PT e outros partidos de esquerda têm utilizado uma campanha de marketing explorando a luta de classes, no embate “nós contra eles” ou “pobres contra ricos”. A defesa da soberania nacional também criou um óbvio apelo inicial nas redes sociais, enquanto o contexto das tarifas de Trump não estava totalmente desenhado. Tudo isso trouxe fôlego a um governo que se presumia combalido após a derrota do IOF imposta pelo Congresso.

Como efeito, a popularidade do governo Lula 3 aumentou nas últimas pesquisas. Pesquisa da AtlasIntel para a Bloomberg (divulgada em 15 de julho), mostra que 60,2% aprovam a política externa do governo, enquanto 38,9% desaprovam, em sondagem após as tarifas de Trump. Na mesma pesquisa, 49,9% aprovam o governo, contra 47,3% em junho; e 50,3% desaprovam, contra 51,8% no mês passado. Já segundo a Genial/Quaest (pesquisa divulgada em 16 de julho), os que aprovam o governo petista subiram de 40% em maio para 43% agora, enquanto os que desaprovam caíram de 57% para 53% nesses 2 meses.

Piora da economia

Mais do que os números em si, a importância de uma pesquisa está na tendência que é revelada. Institutos diferentes mostram uma tendência de recuperação na popularidade do governo, o que é coerente com o maior alcance das campanhas de marketing nas redes sociais, com vídeo de cachorrinhos ricos e pobres do Ministério da Fazenda e a defesa da soberania. No entanto, uma análise mais acurada permite verificar que o cenário não é tão favorável ao governo.

Na mesma pesquisa Genial/Quaest, 80% acham que as tarifas prejudicariam suas vidas. E, pela primeira vez, os brasileiros estão mais pessimistas do que otimistas com relação ao futuro da economia. Para 43%, a economia tende a piorar nos próximos 12 meses, enquanto apenas 35% acreditam que irá melhorar.

Dessa forma, o ganho de popularidade aparenta ser apenas momentâneo. O marketing do governo conseguiu ter algum sucesso, mas os que desaprovam o governo permanecem resilientemente acima de 50%, tornando difícil qualquer candidato conseguir uma reeleição nesse patamar. Além disso, a percepção sobre a economia está piorando. A economia tende a ser o fator mais decisivo em uma eleição, e a população não deve encontrar alívio no curto prazo, segundo os últimos indicadores.

O Índice de Atividade Econômica (IBC-Br), divulgado pelo Banco Central do Brasil em 14 de julho, mostrou uma retração de 0,7% em maio, em comparação com o mês anterior. O número é visto como uma prévia do PIB (Produto Interno Bruto) do país, e essa é a primeira retração em 2025. Já a inflação subiu para 5,35% em junho, no acumulado de 12 meses, estourando o teto da meta de 4,5% para o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) em 2025. E, com o aumento da Selic para 15% no mês passado, os juros se encontram no maior patamar desde 2006, o que tende a diminuir ainda mais a atividade econômica.

Os gastos do governo, com déficit fiscal, também pressionam para cima tanto a inflação quanto os juros. Ainda há de se considerar o efeito das tarifas americanas sobre a economia brasileira. Os Estados Unidos são o destino de 10% das exportações do país, o que corresponde a 2% do PIB. Para o Goldman Sachs, se as tarifas forem “duradouras e sem grandes retaliações“, podem causar uma perda de 0,3 a 0,4% no PIB nacional. A Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) alerta para uma queda semelhante no curto prazo, de 0,4%.

Novos atritos entre os Poderes: IOF, aumento de deputados, pauta-bomba e PL da Devastação

Com piora econômica à vista, o orçamento do brasileiro vai ficar como o orçamento público: mais apertado. Em 16 de julho, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, restaurou o aumento do IOF que havia sido derrubado pelo Congresso. Manteve-se mais ou menos nos moldes pretendidos pelo governo, retirando apenas a incidência do imposto sobre o chamado “risco sacado“, uma espécie de operação de crédito muito usada no varejo, quando fornecedores antecipam o fluxo de caixa das suas vendas. Mesmo com o aumento do IOF “na marra“, o governo ainda precisará de R$ 86,3 bilhões em receitas extras para alcançar a meta fiscal de 2026, que é de 0,25% do PIB. Para os anos seguintes, o volume suficiente é ainda maior. E quanto mais impostos, menos dinheiro no bolso das famílias, menos crescimento econômico.

Antes de decidir, Moraes tentou fazer uma conciliação entre Legislativo e Executivo, mas não houve acordo e o Judiciário decidiu. O episódio elevou ainda mais as tensões entre os Poderes, pelo ativismo judicial que foi visto como uma usurpação das competências do Legislativo. Na mesma data, Lula ainda vetou o aumento no número de deputados federais, de 513 para 531, transferindo o ônus da decisão inteiramente ao Congresso. A medida é altamente impopular, pois aumenta gastos e o tamanho já exacerbado da Câmara dos Deputados, mas a derrubada do veto presidencial é vista como certa, revelando o fosso entre a política e a realidade do brasileiro, que sofre com o descaso das contas públicas pelos Poderes e não goza dos privilégios das autoridades.

Como se não fosse suficiente, a Câmara reagiu ao aumento do IOF e ao veto com um novo golpe ao orçamento. No mesmo dia, foi aprovada uma pauta-bomba de R$30 bilhões para o governo, prevendo crédito subsidiado ao agronegócio, com verbas do Fundo Social, que vem da exploração do petróleo.

E, na calada da noite, ainda aprovou o chamado PL da Devastação (projeto de lei nº 2.159/2021), que retira a necessidade de licenciamento ambiental para todas as atividades (exceto aterro sanitário); retira competências do Ibama e do Conama, descentralizando para estados e municípios; anula partes da Lei da Mata Atlântica, facilitando o desmatamento de florestas primárias e secundárias do bioma que já é o mais desmatado do país; restringe a atuação do Iphan na proteção de bens históricos e sítios arqueológicos; dentre outros pontos. O projeto de lei tem o potencial de gerar mais tarifas e sanções dos Estados Unidos, além de praticamente enterrar o acordo Mercosul-União Europeia, já que a proteção ambiental era o maior obstáculo ao acordo.

O Brasil não é dos brasileiros

Os desdobramentos recentes mostram que a situação fiscal do país é crítica, e mesmo assim, os Poderes parecem cavar o buraco continuamente. O Executivo não cumpre a meta fiscal à qual ele mesmo se propôs, com risco de paralisação da máquina pública e contínuos escândalos, o mais recente sendo o rombo de R$4,3 bilhões no Ministério da Educação, em distorções contábeis apontadas pela CGU (Controladoria-Geral da União), e a não divulgação dos honorários da AGU (Advocacia-Geral da União) desde dezembro de 2024, pagos em valores acima do teto constitucional. O Legislativo faz discurso contrário ao aumento de impostos, derrubando o IOF, mas aumenta o número de deputados e aprova uma pauta-bomba inexequível. Enquanto o Judiciário mantém remunerações acima do teto constitucional e teve aprovada pela Câmara a criação de 200 cargos comissionados no STF, em proposta que vai para o Senado.

Enquanto isso, a população sofre com as consequências da má gestão pública: a inflação, retração econômica, insegurança e serviços públicos ruins. A proposta do governo é mudar o slogan “União e Reconstrução“, parecendo querer mudar a imagem da realidade, já que é incapaz de mudar a realidade em si. De fato, o país segue cada vez mais desunido, o que tende a piorar com a campanha “nós contra eles“, aumentando a polarização política. E não há recursos para qualquer reconstrução: 63% das obras do Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) estão paralisadas, segundo o TCU (Tribunal de Contas da União).

Um novo slogan em tom ufanista, como “Brasil Soberano” ou “O Brasil é dos Brasileiros”, não apaga os problemas do país. Tampouco devolve credibilidade internacional ao país. O governo insiste em uma agenda ideológica, em vez de se guiar pelo pragmatismo comercial da tradição diplomática brasileira independente.

A compra de petróleo russo pode gerar sanções secundárias ao Brasil, como já advertiu a OTAN. Medidas como o PL da Devastação distanciam o Brasil da União Europeia e podem gerar sanções ao agronegócio brasileiro, minando o acordo com a UE-Mercosul. Também com o potencial de manter ou aumentar as tarifas americanas, agora que os EUA abriram uma investigação pelo artigo 301 da Lei de Comércio de 1974, estando a falta de proteção ambiental e o desmatamento recorde entre os motivos que gerariam um desequilíbrio comercial.

Por fim, a busca e apreensão na residência de Bolsonaro, obrigado a usar tornozeleira eletrônica, proibido de usar redes sociais e de falar com o filho Eduardo Bolsonaro, pode ser mais um ponto de tensão com Trump. O certo é que a próxima semana promete muitos desdobramentos.

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