“Não é da sua conta”: do uso de jatinhos às denúncias de assédio sexual e até ao algoritmo que distribui processos — para o STF, tudo deve continuar escondido de quem banca a festa.
Há uma expressão que resume como o Supremo Tribunal Federal prefere lidar com tudo o que, em qualquer democracia, deveria ser público:
“Não é da sua conta!”
Vale para o algoritmo que escolhe qual ministro vai relatar qual processo.
Vale para os voos em jatinhos da Força Aérea Brasileira, que viraram transporte quase exclusivo de autoridades, inclusive ministros do Supremo. Quem paga o combustível, a tripulação e as taxas aeroportuárias? Você. Quem está dentro do avião? Não é da sua conta.
Vale até para saber como e com quem o Supremo gasta em diárias, passagens, hotéis e mordomias pelo mundo afora. Dados que, em qualquer lugar sério, estariam a um clique no Portal da Transparência — mas que no STF somem do mapa por “inconsistências técnicas” sempre que alguém resolve perguntar demais.
E, como se não bastasse, o “não é da sua conta” agora também cobre denúncias de assédio sexual e moral dentro do tribunal. São dezenas de casos nos últimos anos, processos concluídos que, pela lei, deveriam ser públicos — ainda que com nomes ocultos para proteger vítimas e acusados. Mas no Supremo, até isso precisa ficar trancado a sete chaves.
A lógica parece sempre a mesma: quanto mais grave o tema, maior o sigilo. E quanto mais dinheiro público envolvido, menos a população tem direito de saber.
Este texto é sobre isso: sobre algoritmos que ninguém vê, sobre mordomias que ninguém fiscaliza, sobre vídeos que ninguém pode assistir e sobre denúncias que ninguém pode ler. Sobre um Supremo que adora repetir ao cidadão comum — que banca toda essa estrutura — a mesma frase, seja qual for a pergunta:
“Não é da sua conta!”
Sistema de distribuição de processos, o famoso algoritmo do STF
O primeiro passo da tramitação de um processo dentro do Supremo é a escolha da relatoria. Com poderes quase imperiais no âmbito processual, um ministro-relator pode fazer muita coisa, inclusive nada. É comum que processos inteiros tramitem do início ao fim sem saírem do gabinete do relator para apreciação dos seus colegas de tribunal.
É daí a importância de a distribuição das relatorias ser feita por sorteio. É uma camada de segurança para o cidadão. Por ser imparcial e aleatório, o sorteio evitaria a manipulação na escolha dos relatores das ações. Como quase tudo envolve o STF, apesar de importante e essencial para a Justiça, o “algoritmo” é uma caixa-preta.
- Em 2016, o portal jurídico JOTA informou que o pedido de um cidadão via Lei de Acesso à Informação (LAI) para ter acesso ao algoritmo foi negado.
- Em 2017, a Agência Pública fez o mesmo e obteve a mesma resposta: esgotados os prazos legais, o Supremo falou que não responderia nada.
- Mais recentemente, em 2024, o portal UOL tentou auditar o sistema. Em sua matéria, o repórter Eduardo Militão conta que, após quatro anos de negociações, o presidente do STF Luís Roberto Barroso franqueou acesso ao código-fonte do algoritmo. A visita técnica ao tribunal com especialistas foi confirmada duas vezes antes de ser desautorizada, faltando apenas 72 horas para sua realização. Nem o fato de o professor de ciência da computação Diego Aranha, da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, já estar em Brasília para participar dos testes comoveu Barroso.
O sistema parece levantar dúvidas até entre os membros da Corte. Quando assumiu a presidência do tribunal, Cármen Lúcia prometeu a realização de uma auditoria externa no sistema. A promessa nunca foi cumprida, mas, durante a crise instaurada após a morte de Teori Zavascki, então relator da Lava Jato, Cármen fez questão de acompanhar a inserção dos dados no sistema de sorteio, que escolheria Edson Fachin como novo relator dos processos.
De fato, a distribuição dos processos costumava ser alvo de curiosidade para a esquerda brasileira. Em 2017, o insuspeito The Intercept Brasil ironizava a coincidência produzida pelo “algoritmo”: por pura sorte, os inquéritos contra os tucanos Aloysio Nunes, José Serra e Aécio Neves pararam no gabinete de Gilmar Mendes.
As mordomias bancadas com dinheiro público
Bancar uma vida luxuosa para autoridades públicas não é uma obrigação de um povo, mas uma escolha.
Em países como a Suécia, por exemplo, os ministros da Suprema Corte ganham o equivalente a cerca de R$ 25 mil líquidos, e um deles manifestou indignação ao ser perguntado por uma reportagem da BBC se suas refeições eram pagas com dinheiro público (“Não almoço à custa do dinheiro do contribuinte”, respondeu o juiz Göran Lambertz).
Singapura e os Emirados Árabes Unidos, por outro lado, notoriamente remuneram seus funcionários públicos com salários acima do mercado. Posições em cargos de liderança são equiparadas às de executivos de multinacionais. É uma forma de atrair os melhores dos melhores para essas funções. E, dependendo dos resultados, eles podem até receber bônus no final do ano!
O que há em comum tanto na Suécia quanto em Singapura é que, luxuoso ou não, o gasto público das cortes é transparente. Bem diferente do que ocorre no Brasil.
Por aqui, a Força Aérea Brasileira foi reduzida a um serviço de táxi aéreo privativo para autoridades, inclusive os ministros do Supremo. Mas, apesar de os brasileiros bancarem a conta que paga tripulação, combustível, manutenção e despesas aeroportuárias, para o Supremo não é um direito do cidadão saber quem é transportado nesses voos.
O segredo nas despesas não fica restrito aos voos em jatinhos dos ministros. Apesar de estarmos indo para o sétimo mês de 2025, o Portal da Transparência do STF não informa os gastos com diárias nacionais e internacionais para este ano. Com as passagens, a opacidade é ainda pior: não há atualizações desde 2023.
No Portal Poder360, os repórteres Tiago Mali e Letícia Pille mostraram que a opção pelo segredo da boa vida bancada com dinheiro público ocorre há mais de dez anos:
- Em 2013, o jornal Estado de S. Paulo publicou reportagens sobre os gastos do tribunal com as esposas dos ministros durante o período de férias. A resposta da Corte? Retirar do ar as informações.
- Em 2017, a Folha fez uma reportagem sobre os gastos das cortes superiores com passagens aéreas. O STF? O único a não detalhar seus gastos.
- Em 2020, a Corte se antecipou e passou a omitir o destino das passagens aéreas.
- Em 2024, após uma reportagem informar que um segurança de Dias Toffoli levou quase R$ 100 mil para acompanhá-lo ao exterior, “o Tribunal retirou a página de transparência sobre diárias do ar por alguns dias, dizendo que alguns painéis apresentavam informações inconsistentes.”
Vídeo do Aeroporto de Roma
Aeroportos e viagens parecem realmente ser um centro de confusões e segredos para a Corte.
No famoso incidente do Aeroporto de Roma, Alexandre de Moraes alegou que ele e seu filho haviam sido agredidos. Moraes por palavras; já o seu filho teria levado um tapa do agressor. Na época, o presidente Lula chamou os suspeitos de agredir o ministro de “animais selvagens“.
Por meses, a imprensa brasileira noticiou que a confusão havia sido filmada e as imagens confirmavam a versão de Moraes.
Em julho de 2023, a analista da GloboNews Eliane Cantanhêde foi taxativa: “O vídeo do aeroporto de Roma confirma a versão de Alexandre de Moraes à Polícia Federal: o empresário Roberto Mantovani atacou o ministro do STF, sua mulher e filho, com insultos e grosserias, não apenas uma, mas duas vezes.“
Em setembro do mesmo ano, a CNN repetia: “Imagens desmentem versão de agressores de Moraes, dizem fontes da PF.“
Mas eis que, ao chegar no Brasil, as imagens foram envoltas num sigilo inusual. Se a regra é que processos, inclusive criminais, devem correr em público, neste caso se optou, mais uma vez, pelo sigilo. Mas não qualquer sigilo!
Se num processo a defesa e o Ministério Público têm livre acesso às provas, neste, o acesso à maior prova foi sonegado a ambos. Só se podia ver o vídeo dentro de uma sala no STF, sem poder copiá-lo ou analisar o material fora desse espaço.
O estranho sigilo levou a uma reação dura da Procuradoria-Geral da República. Na época, ela era ocupada pela insuspeita subprocuradora Elizeta Ramos. Elizeta não era uma indicação política, mas, como vice-presidente do Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF), tornou-se PGR até Lula indicar um novo procurador.
Elizeta escreveu:
“Não existem, no particular, atos da vida privada que justifiquem a manutenção do sigilo dessas gravações. Nessa perspectiva, não há que se aventar possível invasão da esfera da privacidade dos indivíduos e violação de direitos fundamentais.“
E ainda que:
“Não se pode construir privilégios em investigações criminais e, por tal razão, não se pode admitir a manutenção do sigilo fragmentado da prova no caso em exame.“
O caso fica ainda mais estranho após o relatório do perito Ricardo Molina. Molina foi contratado pela família acusada de agredir Moraes. Ao assistir ao vídeo na salinha do STF, ele concluiu o contrário do que o delegado da Polícia Federal escalado para o caso.
No seu relatório, Molina destaca que o vídeo não foi periciado por um perito da PF, mas por um agente comum, e faz uma acusação grave: o relatório da PF excluiu uma cena do vídeo que demonstra claramente que o que ocorreu em Roma foi o contrário do que Moraes deu a entender:
“Na forma como as imagens 59-61 foram apresentadas no relatório nº 004/23 tem-se uma ideia falsa do que realmente ocorreu (…) Assistindo o vídeo diretamente, constatou-se que uma cena anterior às mostradas nas imagens 59-61 foi suprimida. Tal cena, de extrema importância, mostra uma agressão praticada por Alexandre Barci contra Roberto Mantovani, consistindo em um tapa na nuca. Houve, portanto, uma agressão anterior ao gesto de Roberto Mantovani, o qual, nas imagens de vídeo, levanta o braço em movimento instintivo de defesa, resvalando nos óculos de Alexandre Barci.“
Denúncias de Assédio Sexual
O gosto do Supremo Tribunal Federal por sigilos não para nos algoritmos ou nos jatinhos da FAB.
Nem mesmo quando o assunto é assédio sexual ou moral.
De acordo com o Estadão, nos últimos cinco anos, o STF recebeu 35 denúncias de assédio. Quinze delas já estão concluídas. Pela Lei de Acesso à Informação, processos encerrados podem ser acessados — basta ocultar nomes e dados pessoais. Mas no Supremo, não é bem assim que as coisas funcionam.
Luís Roberto Barroso, o mesmo que prometeu abrir o código-fonte do algoritmo de distribuição e depois desistiu em cima da hora, resolveu agora blindar tudo. Disse que, mesmo com tarjas, revelar os documentos poderia expor as pessoas envolvidas.
A explicação é quase poética: como o quadro de funcionários do STF é pequeno, bastaria ler as histórias para adivinhar quem é quem.
Talvez seja por isso que a Corte ache melhor a população ficar no escuro. Melhor não saber se o assédio aconteceu no almoxarifado, na copa do café ou — hipótese sempre possível — em algum gabinete ministerial.
Enquanto isso, a Controladoria-Geral da União repete o óbvio: processos disciplinares correm em sigilo só enquanto estão em andamento. Depois de concluídos, viram documentos públicos. Basta tapar os nomes. Até o Itamaraty, aquele tradicional reduto de formalidade e sigilos diplomáticos, entregou documentos inteiros ao Estadão, com tarjas pretas onde fosse necessário.
Mas o Supremo parece viver sob leis próprias.
Afinal, se fosse diferente, a sociedade poderia saber não só que houve assédio, mas onde, quem, quando — e, principalmente, se há gente poderosa envolvida.
Por ora, sobra ao contribuinte a mesma mensagem que ecoa de Brasília sempre que o assunto é o Supremo:
“Não é da sua conta!“