Manda quem tem voto… corre atrás quem tem juízo

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Ao longo da carreira, tive a oportunidade de participar de — poucas, que o bom Deus seja louvado — reuniões com representantes de alto escalão do poder público. Em uma dessas ocasiões, ao debater o eterno conflito entre técnica e política, um figurão foi cirúrgico: — “Nós entregamos a solução técnica“, ele disse calmamente, antes de concluir, “mas manda quem tem voto“.

Anos-luz — e muitos bilhões de euros — separam uma humilde sala de prefeitura do suntuoso Berlaymont Building, onde os dignatários da Comissão Europeia dão expediente. Ainda assim, do búlgaro ao sueco, discurso semelhante já deve ter sido proferido pelos corredores em todas as 24 línguas oficiais da União Europeia (UE). Em semanas recentes, é provável que ainda mais.

Na última quinta-feira (10), Ursula von der Leyen, presidente da Comissão, braço executivo da UE, sobreviveu sem dificuldades a uma moção de censura movida pela extrema-direita. A proposta teve como justificativa o “Pfizergate“, escândalo em que a dignatária alemã é acusada de beneficiar a farmacêutica Pfizer na compra de vacinas durante a pandemia do COVID-19.

Quando forças externas tentam nos desestabilizar, é nosso dever responder de acordo com nossos valores. Obrigada e vida longa à Europa“, — celebrou Ursula von der Leyen no X.

Vitória de Pirro e sorriso amarelo

Ainda que em nenhum momento o risco tenha sido real para von der Leyen, de todo o desenrolar até o voto — entre indiretas, acusações veladas e sabatinas públicas — era evidente a insatisfação dos aliados com as recentes mudanças de postura da Comissão em diversos temas sensíveis.

Eu sugiro à presidente que não considere a votação reconfortante. Muitos só foram contra porque a proposta partiu da extrema-direita“, Bas Eickhout, co-presidente do grupo dos Verdes, alertou. Um porta-voz do grupo Renovar Europa disse inclusive que diversos membros votariam contra “com o coração pesado“.

Assumindo o cargo pela primeira vez em 2019 e reconduzida 5 anos depois, von der Leyen — previamente ministra da Defesa alemã — foi eleita em uma plataforma que prometia tornar a Europa o “primeiro continente com emissão zero até 2050“, lançando para isso um “Green Deal” nos 100 primeiros dias de gestão. Defendia também “fronteiras europeias humanizadas“, clamando por solidariedade e citando a história do refugiado sírio de 19 anos que recebera em sua própria casa, considerado por ela como “uma inspiração para todos“.

O presente, porém, costuma ser o pior inimigo do passado, e o hoje da Europa foi cruel com o ontem de von der Leyen. Confrontada por mudanças significativas na opinião pública — refletida em reiterados resultados positivos para a direita e a extrema-direita a nível europeu e local —, a alemã não hesitou em se adaptar, flexibilizando sua postura em questões como sustentabilidade e imigração.

Curva suave à direita

Lá — tal qual cá, e deixo livre à criatividade do leitor encaixar exemplos concretos —, novos tempos pediram novos comportamentos, e a presidente acatou. E, gradativamente, afastou seu grupo, o Partido Popular Europeu (EPP), de sua base de apoio original, composta pelos grupos Socialistas e Democratas (S&D), Renovar Europa e Verdes, alinhados do centro à esquerda. Passou a contar cada vez mais com os grupos à direita para avançar suas propostas e, com isso, se viu forçada a ceder a eles campo em suas iniciativas.

Em outubro de 2024, por exemplo, von der Leyen defendeu, em carta enviada aos líderes dos países-membros, a instalação de “centros de retorno” para deter imigrantes em países fora da União Europeia. Paralelamente, ventilou a criação de “centros de processamento” para que interessados protocolassem os pedidos de asilo ao bloco além de suas fronteiras, e debateu ainda a ampliação dos países considerados seguros para receber deportados.

A guinada à direita ficou clara durante negociações preliminares sobre o orçamento de 2025, quando o EPP abandonou, no último momento, acordo prévio com partidos de esquerda e se aliou a grupos nacionalistas para tentar incluir dotação orçamentária para “barreiras físicas nas fronteiras externas do bloco” e “avaliar o desenvolvimento de centros de retorno“. Os debates fracassaram, e a mudança de postura gerou insatisfação interna, com um membro afirmando que “apesar de essa ter sido uma decisão do grupo, eu a considero errada“.

Nas políticas climáticas, situação similar. Apesar de ser apontado pela presidente como uma de suas principais conquistas, o Green Deal não foi poupado. Abrangente, propõe reestruturar toda a economia europeia, da agricultura à indústria, de modo a compatibilizá-la com as necessidades sustentáveis de um mundo em transformação.

Pressionada, porém, von der Leyen não teve opção a não ser apoiar Manfred Weber, presidente do EPP, em suas medidas de flexibilização do programa. Exigências de redução de emissões foram relaxadas, dotações foram redirecionadas e regras para empresas e indústrias foram simplesmente descartadas. Os aliados da alemã defendem que o coração do Green Deal segue intacto e afirmam que a presidente se mantém comprometida com ele. Admitem, porém, que, frente à nova realidade, ele precisa passar por “adaptações“.

Em julho deste ano, o EPP novamente reafirmou sua posição, recusando dar suporte à iniciativa dos partidos de esquerda que impediria uma maior influência do grupo Patriotas da Europa sobre as discussões dos objetivos climáticos do bloco para 2040. Agora, o Patriotas, opositor expresso da agenda verde da UE, será o responsável por desenvolver a proposta e defendê-la em negociações com os países-membros.

Para os Verdes, a recusa do EPP foi “escandalosa, irresponsável e imperdoável”.

Amigos, amigos… votos à parte

Como esperado, a mudança em 360° da Comissão Europeia, com von der Leyen no volante, não passou despercebido ou ileso pelos corredores políticos europeus.

À esquerda, resignação, com o S&D resmungando que “o voto de hoje mostra claramente que o EPP prefere colaborar com a extrema-direita“. Do outro lado, comemoração e uma pitada de deboche. Enikő Győri, parlamentar do Fidesz, partido do húngaro Viktor Orban, avisou que “o EPP precisa aprender que sua única chance de corrigir os erros da política econômica europeia é ao nosso lado“.

A questão é que aqui, novamente, a verdade surge de forma gritante. A democracia é um bicho curioso: suas maiores virtudes são, em essência, seus principais defeitos. Em um ambiente verdadeiramente democrático, todos têm direito à voz, seja para falar a asneira que for.

Outra característica enervante da democracia é seu instrumento maior: o voto. Com as engrenagens funcionando direito, ele determina a direção. Se a população hoje acredita que o mundo está à beira do colapso climático, e recompensa quem estiver disposto a enfrentá-lo, aqueles no poder correm para — pelo menos no discurso — atender ao clamor. Se amanhã o jogo virar, e as pessoas passarem a considerar que o custo econômico das mudanças hoje assusta mais que a enchente de amanhã, os incumbentes mudam juntamente, sem embaraço, criticando com fervor aquilo que defendiam antes.

Nesse sentido, von der Leyen não faz nada de diferente de seus pares. Em seu discurso de posse, ela apontou uma “lógica clara e simples: não são as pessoas que servem à economia. A economia é que serve às pessoas“.

Na política, porém, a ordem não costuma ser tão simples. Ou tão clara. Ou tão lógica. E lá — tal qual cá — pouco importam os números e projetos que os técnicos desenham. Manda mesmo é quem tem voto. Quem o quer, se adapta.

Fontes: Politico Europe, Euractiv, EU Observer, Euronews, Bloomberg, New York Times

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