O Gilmarpalooza não é apenas um fórum jurídico em Lisboa. É um evento único nas democracias.
O leitor pode refazer o trabalho deste articulista e pesquisar: não há nada parecido no mundo. Ninguém consegue reunir tantos senadores, deputados, ministros, juízes de tribunais superiores, bilionários e todo tipo de autoridade como Gilmar Mendes faz todos os anos.
O fato de fazê-lo a um oceano de distância do seu país de origem é apenas um detalhe para o evento que explica o Brasil melhor que qualquer edição do Diário Oficial.
O que é o Gilmarpalooza?
Realizado anualmente desde 2013, o Fórum Jurídico de Lisboa ganhou o apelido de “Gilmarpalooza” não por obra dos seus inimigos, mas através do boca a boca de quem frequenta o evento.
Em 2025, bateu recorde. Três mil inscritos, mais de 300 palestras em três dias, tudo sob as arcadas da Universidade de Lisboa.
O evento se pretende acadêmico e tem como objetivo gerar “discussões e debates”. Sua organização fica a cargo do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), que tem Gilmar como sócio, do Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e da FGV Justiça, da Fundação Getulio Vargas. Até hoje, não se tem notícia, entretanto, de qualquer contribuição relevante que tenha saído de tamanha reunião.
Para quem participa, no entanto, a programação oficial parece ser apenas uma desculpa para o que realmente interessa: o livre acesso aos ouvidos das autoridades reunidas ali como palestrantes. De acordo com a Folha de S. Paulo, 150 delas — entre membros do Judiciário, Congresso, agências reguladoras, governos estaduais e outros órgãos públicos — bateram ponto no Fórum. Lá, longe dos olhos do público, empresários, advogados e lobistas têm a oportunidade de promover eventos ainda mais exclusivos.
A evidente confusão entre público e privado não surpreende apenas quem participa do Gilmarpalooza. Para o tradicional jornal suíço NZZ, o evento é uma das provas de que o Judiciário brasileiro virou uma casta intocável. O também tradicional Handelsblatt, da Alemanha, pergunta sem rodeios: “Quão corruptos são os juízes do Brasil?”
A programação que realmente interessa
Antes mesmo do Gilmarpalooza começar, a festa já estava em andamento.
Na segunda, o chamado Seminário de Verão de Coimbra reuniu vinte ministros do STF e do STJ para discussões a respeito do tema “Descortinando o futuro: 30 anos de debates jurídicos“. O tema só não é mais vago do que a lista de patrocinadores. Num arranjo incomum, as diversas empresas que financiaram um evento tão importante preferiram não aparecer.
Na terça, a Associação Latinoamericana de Internet (ALAI) — que representa de Meta a Rappi — promoveu um almoço para convidados na tradicional Adega da Tia Matilde, aberta desde 1926. A lista dos presentes, como quase tudo que envolve brasileiros poderosos em Portugal, não foi divulgada.
À noite, o coquetel ficou por conta da Esfera Brasil, comandada por João Camargo, presidente executivo do conselho da CNN Brasil. O evento não poderia ter sido mais democrático: reuniu o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, o decano Gilmar Mendes, o ministro Bruno Dantas do TCU, Arthur Lira, além de nomes do empresariado como o CEO do iFood e o presidente da Federação Brasileira de Bancos. João Camargo, inclusive, fez questão de se gabar (veja aqui) de ter reunido tantos comensais — e de agradecer ao empresário Flavio Rocha, dono da Riachuelo, por ter emprestado sua cobertura para o encontro.
Na quarta, o almoço foi em homenagem ao ex-presidente Michel Temer. A lista — quase 500 convidados — ia do procurador-geral Paulo Gonet a ministros do governo Lula como Alexandre Silveira, Ricardo Lewandowski e Jader Filho. Não houve discursos, mas, segundo quem estava lá, teve muita “conversa”.
Em 2024, o BTG Pactual promoveu um happy hour após o evento. O rooftop do luxuoso restaurante SUD foi decorado com a logo do banco e recebeu ilustres de todas as áreas. Para além do banqueiro André Esteves, Gilmar confraternizou com os presentes até ser “substituído” por Barroso. Tudo regado a camaradagem e a um estoque aparentemente infinito de vinho do Porto. Entre os convidados, estavam donos de grandes escritórios de advocacia e juristas influentes nos tribunais superiores, como Lenio Streck — para quem Sergio Moro sempre errou e Alexandre de Moraes nunca erra — e o famoso Kakay, o único indivíduo livre para circular de bermudas nos corredores do Supremo. A cena deve se repetir este ano.
Nem a FGV escapa…
Um detalhe quase sempre esquecido no meio de tanto tapinha nas costas no Gilmarpalooza: um dos organizadores do evento, a Fundação Getúlio Vargas, deve muito ao próprio Gilmar, como contou o repórter Allan de Abreu na revista piauí.
A FGV se vende como templo da excelência acadêmica. Mas, na última década, protagonizou um filme policial. Corrupção, evasão de divisas, empresas de fachada, contratos milionários sem licitação. Um roteiro digno de filme, mas, como todo escândalo que cai no colo de Gilmar Mendes, não espere nenhuma surpresa.
As dúvidas sobre a FGV começaram em 2016, quando Daniela Faria Tavares assumiu a Promotoria de Fundações do Rio.
Daniela cismou que a fundação andava longe de ser tão limpinha quanto parecia. Em 2019, mergulhou na contabilidade da entidade e encontrou o que chamou de “bagunça completa“. Saques em dinheiro, empresas de fachada recebendo milhões, diretores embolsando bônus milionários.
Diante do descalabro, o Ministério Público do Rio pediu o afastamento da cúpula da FGV, quebra de sigilos e perda da imunidade tributária da instituição.
A FGV, claro, não ficou parada. Ainda em dezembro de 2019, correu até o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) alegando “excessos” da Promotoria. O CNMP deu uma liminar proibindo promotores de reprovar contas das fundações se o processo durasse mais de um ano. Na prática, isso matou a investigação. A FGV demorava a entregar documentos, enquanto apenas três promotores precisavam fiscalizar quase trezentas fundações.
O MP bem que tentou tentou derrubar a liminar e num desses desvios processuais que só acontecem no Brasil, o caso acabou em 2020 no gabinete de Gilmar Mendes. Ninguém no Supremo pareceu achar estranho que um juiz julgasse um parceiro de negócios. Nem que a fundação tivesse contratado para defendê-la o advogado Rodrigo Mudrovitsch — ex-aluno, advogado particular e professor na faculdade do próprio Gilmar.
Em abril do mesmo ano, Gilmar manteve a liminar do CNMP, alegando que o conselho tem autonomia para controlar atos dos promotores e que, no caso do Rio, eles teriam ultrapassado “regras constitucionais e legais“. E pronto.
Dois anos depois, em novembro de 2022, a Polícia Federal deflagrou a Operação Sofisma. Descobriu indícios de desvio de milhões na fundação. Sua investigação não guardava relação com iniciada na Promotoria do Rio, mas isso não impediu a FGV de ir direto ao Supremo. Para isso, usou como atalho aquela mesma ação cível que Gilmar mantinha aberta desde 2020.
Gilmar aceitou. Concedeu o habeas corpus. Anulou tudo o que a Polícia Federal tinha feito no âmbito da Justiça Federal. E, em pleno domingo, determinou que a PF devolvesse imediatamente celulares, computadores e documentos apreendidos. Investigadores dizem que, ali, morreu qualquer chance de vasculhar dados antes que sumissem.
Hoje, o caso dorme em segredo de Justiça Estadual do Rio. E a FGV continua firme, organizando o Gilmarpalooza, orgulhosa do seu “poder político extraordinário“.
Os segredos que Lisboa guarda
Em junho de 2023, uma das festas paralelas do Gilmarpalooza virou caso de polícia. Victor Pellegrino Júnior, lutador de artes marciais, espancou o advogado Rodrigo Alencastro, que também é procurador do governo do Distrito Federal e figura conhecida nos bastidores jurídicos. O motivo: uma mulher.
Caroline Azeredo, advogada, era ex-namorada de Rodrigo e atual de Victor. Conta o repórter Rodrigo Rangel que o trio já havia se esbarrado anteriormente no evento e houve um princípio de tumulto. Mas nada tão grave quanto a briga que deixou Rodrigo sem carteira, sem celular e até sem a pulseira do seu Rolex.
De volta ao Brasil e humilhado na frente de meio mundo, Rodrigo resolveu subir o tom. Além de registrar boletim de ocorrência, acusou a ex de vender influência nos gabinetes do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A história que Rodrigo conta é simples: Caroline, dona de porte de modelo, faria parte de uma rede que promove festas juntando advogados de grandes bancas, ministros, políticos e empresários. Não é gratuito. Segundo Rodrigo, Caroline chegava a cobrar meio milhão de reais por sentença no STJ.
Os custos públicos
Nem os cofres públicos passam ilesos pelo Gilmarpalooza.
A ANA (Agência Nacional das Águas), por exemplo, soltou circular falando em arrocho e corte de diárias. No papel, tudo bonito. Dias depois, publicou no Diário Oficial a autorização para sua presidente, Veronica Rios, voar para Lisboa, tudo pago pela própria autarquia. A contenção de despesas ficou só no PowerPoint.
No Senado, seis senadores decidiram incluir Lisboa na agenda de “missão oficial”. Tudo pago. Na Câmara, a turma foi ainda maior: dos 44 deputados que bateram ponto no evento, 30 viajaram com passagens, hospedagem, deslocamentos e o resto dos mimos legais pagos pelo contribuinte. Só em diárias, a conta foi de R$ 1,2 milhão em 2024.
“Anômala, esquisita e esdrúxula“
Nem quem confessou ter corrompido de vereadores a presidentes da República precisa se esconder no Gilmarpalooza.
Em 2024, o Fórum Jurídico de Lisboa não serviu apenas para as autoridades brasileiras atravessarem o Atlântico. Também virou palco para figuras que tinham sumido da cena política depois de escândalos de corrupção. Caso do ex-senador Romero Jucá, que apareceu por lá como se nada tivesse acontecido.
Mas ninguém simboliza essa reabilitação tanto quanto Joesley Batista, dono da JBS e do grupo J&F. Em julho de 2023, Joesley foi visto conversando no ouvido de Luís Roberto Barroso, às vésperas de ele assumir a presidência do STF. Em 2024, voltou a Lisboa para mais uma edição do Gilmarpalooza, e nem precisou constar na lista oficial de palestrantes.
Segundo o Estado de S. Paulo, o Gilmarpalooza de 2024 reuniu representantes de ao menos doze empresas com processos no Supremo. Mas, para quem circula pelos corredores do poder Lisboa, ninguém parece preocupado. No Gilmarpalooza, sempre cabe mais um. Mesmo alguém que, até pouco tempo atrás, admitia ter comprado vereadores, deputados, senadores, e até presidentes.
Para Flavio Dino, quem critica esse tipo de mistura entre empresários e juízes em Portugal tem uma visão “anômala, esquisita e esdrúxula”. Então tá, ministro. Esquisitos somos nós. Normal é o Gilmarpalooza.