A retomada das favelas do Rio: um novo capítulo ou mais uma promessa eleitoreira?

O anúncio do governo do Rio de Janeiro de solicitar apoio do Exército e da Polícia Federal para retomar territórios dominados por organizações criminosas me fez lembrar de 2011 e 2012, quando estive à frente de um batalhão de infantaria na ocupação dos Complexos de favelas do Alemão e da Penha no Rio de Janeiro. O tema reacende um antigo debate: até que ponto essas operações são eficazes e sustentáveis, ou apenas movimentos políticos para capitalizar apoio popular? A proposta, que será apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF) até 15 de outubro de 2025, em cumprimento à decisão da Corte na “ADPF das Favelas“, promete ações integradas entre forças estaduais e federais, com foco inicial em comunidades de “baixa criticidade”, como Cidade de Deus, Vila Kennedy e Mangueirinha. No entanto, a história recente de intervenções no Rio levanta questionamentos sobre a real capacidade do Estado de transformar essas regiões e evitar que voltem ao controle do crime organizado. Lições do passado: Operações Arcanjo, São Francisco e a Intervenção de 2018 Para avaliar o potencial da nova proposta, é essencial revisitar operações anteriores. Em 2010, a Operação Arcanjo marcou a ocupação dos Complexos do Alemão e da Penha pelas Forças Armadas, com o objetivo de desarticular o tráfico e preparar o terreno para as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). A missão começou sob forte comoção popular e apoio da mídia após uma onda de ataques que durou mais de 10 dias, paralisou o Rio de Janeiro com mais de 180 veículos incendiados, 40 homicídios, suspensão de serviços públicos e fechamento do comércio. Após 19 meses, em 2012, o Exército deixou a região considerada “pacificada”. No entanto, a transição para a Polícia Militar foi marcada por falhas logísticas e ausência de continuidade em políticas públicas. O governo estadual negligenciou ações sociais e de infraestrutura, permitindo que o tráfico recuperasse terreno. A Operação São Francisco, realizada entre 2014 e 2015 na Maré, foi amplamente divulgada antes de iniciar e não começou sob comoção. A ocupação militar buscava conter a violência às vésperas da Copa do Mundo e das Olimpíadas. No entanto, os resultados foram limitados, pois a falta de continuidade nas ações realizadas nos complexos do Alemão e da Penha viabilizou um rápido retorno ao controle territorial armado do Comando Vermelho, desmoralizando esse modelo de operação. Após a saída das Forças Armadas, a ausência de investimentos em serviços básicos e a fragilidade das forças policiais locais permitiram o retorno das facções. A Intervenção Federal de 2018, comandada pelo general Walter Braga Netto, foi voltada exclusivamente para a Segurança Pública. A cidade enfrentava uma crise de abastecimento devido ao roubo constante de cargas. Entre os principais resultados: Apesar dos resultados, a imprensa adotou uma postura crítica, dando ênfase a falhas pontuais. A ausência de estratégias de longo prazo e os escândalos de corrupção na cúpula do governo prejudicaram a continuidade e consolidaram uma deterioração rápida após o fim da intervenção. O novo plano: Integração ou Improviso? O plano atual, liderado pelo governador Cláudio Castro, propõe uma abordagem mais ampla, envolvendo Exército, Polícia Federal e forças estaduais. Segundo o secretário de Segurança Pública, Victor dos Santos, as operações incluirão políticas de inclusão social, estímulo à economia local e combate ao controle de serviços como internet, gás e energia elétrica pelas facções. A ideia de “governança compartilhada” entre município, estado e União soa promissora, mas esbarra em um histórico de descoordenação entre os entes federativos. Começar por comunidades de “baixa criticidade” pode ser uma estratégia para evitar confrontos intensos em áreas como o Complexo do Alemão, considerado de “alta criticidade” por conta das barricadas e do armamento pesado. Entretanto, essa abordagem também pode ser vista como uma forma de adiar o enfrentamento direto com as facções mais poderosas, gerando dúvidas sobre a real ambição do plano. A questão da GLO e o papel das Forças Armadas O uso da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que viabiliza o emprego do Exército com veículos blindados para desmantelar barricadas, é visto como uma “opção logística”. No entanto, experiências anteriores indicam que, embora eficaz no curto prazo, a presença militar não gera resultados duradouros sem uma ocupação civil robusta. As Forças Armadas, projetadas para defesa nacional, podem ser adaptadas para atuar nesse cenário urbano complexo, exigindo inteligência, proximidade com a população e políticas sociais consistentes. A proposta de GLO também reacende um debate sensível: o risco de uso político das Forças Armadas para capitalizar resultados. A Operação Arcanjo (2010–2012) foi marcada por alinhamento entre o governo do PT e a imprensa, visando transmitir uma imagem de segurança que garantisse os megaeventos. A Ocupação da Maré seguiu o mesmo roteiro. Já a Intervenção de 2018 enfrentou oposição ferrenha da imprensa e do meio acadêmico, mais alinhados à esquerda, que omitiram avanços conquistados. Hoje, o embate entre o governador Cláudio Castro (PL) e o presidente Lula (PT) pode transformar a nova operação em palco de disputas eleitorais, às vésperas das eleições de 2026. A promessa de neutralidade partidária é bem-vinda, mas difícil de sustentar em meio a uma forte polarização. Um futuro incerto Com ênfase em integração e políticas públicas, o plano parece corrigir erros do passado, mas sua efetividade dependerá de coordenação, recursos e vontade política. A história mostra que a presença do Estado não pode se limitar a tanques e fuzis. Educação, saúde, infraestrutura e oportunidades econômicas são essenciais para libertar verdadeiramente as comunidades do domínio do crime. Resta saber se as unidades das Forças Armadas serão adaptadas em equipamento e treinamento para enfrentar esse tipo de desafio com mais frequência, ou se o uso recorrente da GLO revela a incapacidade do Estado de combater o crime sem recorrer a medidas de exceção. A resposta definirá se o Rio de Janeiro está inaugurando um novo capítulo ou apenas relendo antigas promessas. Sobre o autor: o coronel Fernando Montenegro é veterano das Forças Especiais, professor na Pós Graduação em Gestão e Direção de Segurança da Universidade Autônoma de Lisboa e comentarista/articulista da CNN PORTUGAL.

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