Ao acompanhar o julgamento de Eichmann, em Jerusalém, Hannah Arendt parece ter entendido a essência do que aconteceu no regime nazista, que incutiu um nível de controle tão grande na população alemã a ponto de esta passar a normalizar as ordens e orientações do partido, reproduzindo-as e naturalizando-as, sem questionar a moralidade do que estava sendo praticado. A capacidade de seres humanos cometerem atos inimagináveis pela falta de pensamento crítico ou reflexão – como era o caso de Eichmann, general alemão que facilitou o envio de cerca de 1,5 milhão de judeus aos campos de extermínio não por ódio, mas por estar apenas cumprindo ordens e seguindo as leis da época –, Hannah Arendt denominou “a banalidade do mal“.
Recentemente, o Brasil acompanhou o desfecho do julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet, por meio do qual o Supremo Tribunal Federal, por interesse próprio e a mando do presidente da República, pretende “regular” as plataformas digitais, aumentando sua responsabilidade sobre o conteúdo postado por terceiros.
Um dos pontos mais impressionantes do julgamento foram as falas de alguns ministros, como Cármen Lúcia – a mesma jurista que, em 2022, votou por proibir a divulgação de um documentário na internet sobre um dos candidatos à Presidência da República, reconhecendo que se tratava de censura, mas apenas até o dia subsequente ao segundo turno das eleições, para que “não haja o comprometimento da lisura, da higidez, da segurança do processo eleitoral“. Afirmou em 26 de junho de 2025, em seu voto, que “a grande dificuldade está aí: censura é proibida constitucionalmente, eticamente, moralmente, e eu diria até espiritualmente. Mas também não se pode permitir que estejamos numa ágora em que haja 213 milhões de pequenos tiranos soberanos“.
Em alto e bom som, a Suprema Corte anunciou ao país que as leis nele vigentes não servem para proteger o cidadão do poder e dos excessos do Estado. Pelo contrário, defendem a elite que o tomou para si.
O cerceamento da liberdade individual, da livre expressão do pensamento, é, sem dúvidas, o caminho para a banalização do mal. Quando o indivíduo não pode manifestar seus pensamentos por medo da perseguição estatal, da clausura, do linchamento virtual e de penas econômicas, a moralidade que passa a vigorar é única e exclusivamente aquela ditada por quem está no poder.
Uma sociedade com pensamento massificado, sem capacidade de avaliar criticamente as leis ou decretos governamentais que disciplinam cada aspecto de sua vida, por certo não há de questionar por que a Suprema Corte tem verba para presentear seus parceiros com gravatas personalizadas, enquanto as pessoas comuns esperam por anos na fila do SUS por uma cirurgia.
A liberdade de expressão não é um luxo das democracias – é o seu próprio alicerce. Quando o Estado se torna o único intérprete legítimo da verdade e o cidadão perde o direito de questionar, expressar e até mesmo errar em público, estamos às portas de um sistema no qual o mal deixa de ser monstruoso e passa a ser apenas funcional. A censura disfarçada de regulação, a moralidade moldada por conveniência política e a intimidação judicial como mecanismo de silenciamento não são apenas sintomas de autoritarismo – são os instrumentos que o tornam banal.
Assim como Eichmann alegava apenas “cumprir ordens“, hoje muitos aceitam calados o avanço de medidas que restringem liberdades individuais, confiando que, se estiverem do lado certo do discurso oficial, não serão atingidos. Esquecem-se de que o arbítrio, uma vez instalado, não conhece limites. O desafio contemporâneo, portanto, não é apenas preservar o direito de falar, mas garantir que nenhuma autoridade – por mais iluminada que se julgue – possa decidir quem pode ou não ser ouvido.
O silêncio forçado nunca protegeu a democracia. Pelo contrário, foi sempre o prelúdio de seus períodos mais sombrios. Que não nos falte coragem para resistir – não à crítica, não ao dissenso, mas ao consentimento automático e à abdicação do pensamento, pois é nesse vazio que o mal, travestido de virtude, se acomoda e prospera.
Nathália Ceolin Vieira, associada do Instituto de Estudos Empresariais (IEE)