O verdadeiro significado do 8 de janeiro de 2023

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Toda comunidade política necessita de mitos fundadores que justifiquem, para além da mera necessidade financeira e administrativa, o poder e a independência da própria comunidade. Historicamente, os mitos se situavam no limiar do sobrenatural e do mágico, justificados numa antiga autoridade social cujas origens já não podiam ser rastreadas e continuados pela poderosa propensão do humano à repetição mimética das tradições que lhe ajudaram a sobreviver.

O mundo moderno e do Iluminismo, contudo, não mais aceita mitos puramente mágicos – apenas parcialmente mágicos. É o caso da democracia, cuja justificativa jaz numa abstrata “vontade do povo” ou “vontade geral“, que, a rigor, não pode ser empiricamente determinada. Todos os regimes modernos ainda se fundamentam em mitos cuja essência beira o místico e o surreal: o “universalismo proletário“, a “raça superior“, a “nação proletária“, o “destino manifesto“, a “vontade do povo” etc. Malgrado suas guinadas “racionais“, a linha demarcatória do real e do imaginário nunca deixou de existir no mundo da política — apenas teve suas proporções alteradas.

O Brasil, contudo, foi recentemente alvo de uma nova conjuração mística – o “brincar com mágica“, que Eric Voegelin alertava ser a tarefa principal dos demagogos modernos – devido aos acontecimentos de 8 de janeiro de 2023. A baderna descontrolada daquele dia fatídico, com suas impressionantes imagens de vandalismo e zombaria dos símbolos republicanos, penetrou fundo na mente de agentes públicos e administrativos do Estado brasileiro.

Não estou falando de política partidária, o PT ou o que o seja, não: agentes públicos e funcionários do Estado brasileiro, previamente responsáveis por manter o funcionamento da máquina burocrática e as instituições do Estado de direito, tornaram-se militantes políticos que se autoarrogaram a função de salvar a democracia, extrapolando quaisquer funções delimitadas constitucionalmente.

Esses agentes políticos passaram a perceber uma realidade lúgubre e perigosa, onde o regime político que lhes garante o emprego estaria sitiado internamente por um inimigo insidioso e corruptor: a “extrema-direita” golpista e fascista que se articula através das redes sociais. Embora, factualmente, não tenha existido tentativa de golpe, a narrativa do mito não necessita ser factualmente correta — ou sequer baseada em fatos. Os meros atos de vandalismo popular — chocantes em si mesmos — forneceram o material interpretativo de que agentes políticos do sistema se utilizaram para confeccionar esse mito.

Baseado nessa interpretação mitológica dos acontecimentos, o sistema político se transformou em algo que já havia dado sinais anteriormente: uma democracia politicamente militante. O Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, antes meras cortes de controle de constitucionalidade e de apuração de litígios eleitorais, tornaram-se, através de vários despachos e decisões interlocutórias, um quarto poder: o moderador, capaz de suspender atos do Poder Legislativo e pautar o ritmo das mudanças políticas e legislativas. Do mesmo modo, suas decisões se tornaram novos projetos de leis enviados apenas para chancela do Poder Legislativo.

A utilização do 8 de janeiro como um novo mito fundador até mesmo contou com os julgamentos de espetáculo, com suas prisões preventivas abusivas, penas desproporcionais e bodes expiatórios imolados no tribunal inaugural do novo regime. O ápice emocional dos julgamentos serve como procedimento catártico para uma desintoxicação do “verme” autoritário da “extrema-direita” que havia infectado a democracia. Essa situação promoveu absurdos de desproporcionalidade jurídicas gritantes: penas cavalares por atos de vandalismo, enquanto assassinos e estupradores conseguem sair da cadeia em poucos anos através do abjeto regime de transição de pena do Código de Processo Penal.

Essa situação, contudo, não causa vergonha aos agentes políticos conduzindo a limpeza moral do Estado brasileiro: o assassínio sistemático de brasileiros nas ruas das cidades de Norte a Sul não é uma preocupação tão relevante quanto salvar a democracia e o ato ritualístico de votar na urna eletrônica.

Uma nova era surgiu.

Curiosamente, a nova configuração de poderes diminuiu a autonomia do Poder Legislativo, o poder que encarna institucionalmente a vontade do povo e dos Estados — o poder mais “democrático“, podemos dizer. A nova democracia, portanto, limitou seu mito fundador originário em prol de um regime militante, onde agentes políticos sem respaldo do voto popular exercem o poder de ditar os rumos da criação legislativa. A própria e clássica configuração dos três poderes oriunda de Montesquieu no século XVII foi desvirtuada, concentrando uma clara supremacia no Poder Judiciário como o baluarte da defesa de todo o sistema. A frase: “O século XIX fora o século do Legislativo; o século XX, do Poder Executivo; e agora, o século XXI será do Poder Judiciário” se transformou numa realidade brutal diante dos olhos de todos.

Um novo regime político foi inaugurado em 8 de janeiro de 2023, e suas transformações são profundas, embora ainda ostentem a aparência das antigas formalidades legais, como os dispositivos constitucionais e um semblante do direito de defesa — corroídos e relativizados sistematicamente —, tudo em defesa do próprio sistema. Algum dia, talvez, os próprios agentes políticos conduzindo o processo se toquem de que a essência do regime democrático e do Estado de direito está na garantia de seus princípios, e não na criação de exceções salvíficas.

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